Elenice Gomes

Trago experiências vividas em parcerias desde 2023 promovidas pelo NEPSIS (Núcleo de Estudos de Psicodrama e Sistêmica), do qual sou coordenadora.
A primeira delas foi quando fizemos um ciclo de cinco sessões de Rodas de Conversas em grupo acerca do gênero feminino quanto aos abusos: físico, sexual, psicológico, moral e patrimonial. Cada sessão de uma hora e meia de duração foi dedicada a um dos tipos de abuso e podemos dizer que foi um trabalho de psicoeducação, onde esclarecíamos os conceitos e ao mesmo tempo partilhávamos nossas experiências clínicas e pessoais, sob o manto do sigilo e confidencialidade. Éramos três psicodramatistas: Mônica de Lima Azevedo, Claudia Paes Leme e eu, O trabalho desenvolveu-se totalmente on-line, pela plataforma Zoom.
Como desdobramento dessa experiência, vimos a necessidade de oferecer ao público feminino uma psicoterapia grupal com metodologia psicodramática, com sessões semanais de uma hora e meia de duração. Assim, constituímos uma unidade funcional: eu como diretora e Ana Lúcia Tavares – criadora do Palco de Papeis – como ego-auxiliar e oferecemos a proposta em nossas redes sociais virtuais. Iniciamos esse trabalho no início de 2024, também on-line pelo Zoom, com o intuito de finalizá-lo ao final desse mesmo ano, o que foi revisto durante o processo e alteramos o grupo com característica aberta para a entrada de novas interessadas, agora com tempo indeterminado de duração.
Paralelamente e na passagem de um trabalho para o outro, oferecemos lives pelo Instagram do NEPSIS, intitulado “Café com Mulheres”.
A primeira dessas lives aconteceu no Dia Internacional das Mulheres e foi sobre ‘Abusos de gênero’ como subtítulo. Realizamos com as mesmas duas parceiras da Roda de Conversa, Mônica e Claudia:
- Diferenciamos abuso psicológico do moral, que são facilmente confundidos. O abuso moral diz respeito aos valores socialmente intrínsecos, enquanto o psicológico, que inclui também o emocional, refere-se aos ataques à individualidade da pessoa, ferindo sua autoestima.
- Percebemos que os abusos físicos são mais facilmente compreendidos e os sexuais também, embora houvesse necessidade de diferenciar melhor sobre o que é assédio e abuso. Cada um deles é considerado crime e está ligado ao grau de criminalidade que os acomete.
A segunda live foi feita com a nova parceria de unidade funcional em atendimento no grupoterapia de mulheres – Ana Lúcia – cujo subtítulo foi: ‘Interseccionalidades: gênero, etnia/raça e classe’ sendo a nossa convidada para o assunto a Maria Célia Malaquias.
A terceira live realizada também em parceria com Ana Lúcia teve como foco as ‘Diversidades de gênero e misoginia’, para a qual convidamos a Maria da Penha Nery.
Isso posto, apoiamo-nos no conhecimento de que ao falarmos de Gênero, precisamos considerar três eixos: o Feminismo (vivido agora em sua quarta onda), Masculinidades e Diversidades. Optamos por focar na condição de pessoas autodefinidas pelos pronomes Ela/Dela em sua interseccionalidade e sua diversidade.
A primeira onda do feminismo se deu em meados do século XIX até meados do século XX pelo movimento sufragista mundial, na luta pelo direito das mulheres ao voto nas eleições de seus países. Aliás, há um filme belíssimo com esse nome, baseado no movimento feito pelas mulheres inglesas no começo do século XX. Sabemos que no Brasil o voto às mulheres foi permitido somente em 1932.
Do início da década de 60 até a década de 90 do século XX deu-se a chamada segunda onda do feminismo, onde as mulheres lutavam por justiça e conclamavam a igualdade social de gênero. Betty Friedman foi um dos expoentes desse movimento.
A terceira onda se inicia na sequência da segunda, indo até em torno de 2010, quando foram introduzidas as interseccionalidades entre gênero, etnia/raça e orientação sexual. Essa onda centrou-se muito no empoderamento da individualidade e Bell Hooks, Cida Bento e Djamila Ribeiro, entre outras, contribuem enormemente para essa tomada de consciência. Lelia Gonzalez é uma importante referência nos estudos e debates de gênero, raça e classe no Brasil. Aqui consolida-se o alongamento da sigla para LGBTQIAPN+. Judith Butler é reconhecida mundialmente por questionar a heterocisnormatividade e o binarismo, introduzindo a letra Q (queer) nessa sigla. Paul Preciado, uma pessoa transgênero e feminista publica o “Manifesto contra sexual”.
Do início do século XXI até os dias de hoje, com predominância da era digital na comunicação humana, surgem movimentos como “Me too” nos Estados Unidos e a “Marcha Mundial das Mulheres (MMM)”, com a finalidade de realizar uma campanha mundial contra a pobreza e a violência contra as mulheres. A Marcha das Margaridas no Brasil reforçou esse movimento internacional, incorporando a luta da mulher no campo.
A luta contra o sexismo se universaliza. E todas estas lutas se referem a relações de poder entre pessoas e o jeito que as sociedades lidam com os corpos humanos e seus destinos.
Algumas conquistas têm sido obtidas, como, por exemplo a Lei Maria da Penha em 2006. Essa foi uma conquista obtida às custas de sua paraplegia devido a agressões de seu ex-marido. E o inacreditável agora é que setores da sociedade que criaram um tal Universo Paralelo tentam inverter agora a história dessa mulher, transformando a narrativa de que o abusador é que foi a vítima e a vítima ‘romantizou’ o fato.
O site Mapa do Acolhimento nos informa também outras conquistas sociais das mulheres:
- Absorventes gratuitos nas Farmácia Popular
- Direito ampliado a acompanhante para mulheres nos serviços de saúde
- Lei de igualdade salarial
- Prioridade no atendimento à mulher vítima de violência
Sobre violência e o controle de corpos humanos, tivemos no meio do mês de junho agora um triste e trágico acontecimento. A Câmara dos Deputados Federais do Brasil aprovou, em regime de urgência, um Projeto de Lei denominado PL 1904/2024. Esse fato suscitou infinitos debates nas mídias todas e em grupos presenciais, gerando inconformismos e revoltas populares imediatas. Muitas mulheres e homens foram às ruas de várias cidades protestarem contra a aprovação do tal PL, que passou a ser chamado de PL do Estupro ou do Estuprador. E por quê? Porque se esse projeto for aprovado no Senado e sancionado pelo presidente da república, alterará o Código Penal brasileiro com penas mais severas para mulheres e crianças/adolescentes que abortassem uma gestação após a 22ª semana.
O deputado que propõe esse PL reativou uma lei brasileira de 1940, que já garante o direito ao aborto a mulheres em três situações:
- Gravidez ocasionada por estupro
- Se a gravidez representa risco à vida da mulher
- Em caso de anencefalia do feto
A legislação brasileira atual não prevê um limite máximo para interromper a gravidez de forma legal. O que esse PL propõe é limitar esse limite a 22 semanas, pois após esse período, o feto já pode sobreviver fora do útero materno.
O Atlas da Violência 2024 mostra o aumento da violência sexual contra meninas ano a ano, desde 2020. Meninas de até 14 anos são as mais afetadas: 30,4% da violência sofrida por meninas de 0 a 9 anos em 2022 teve caráter sexual. Entre 10 e 14 anos, o índice chegou a 49,6%. De 15 a 19 anos chegou a 21,7% e entre 20 e 24 anos a 10,3%, mantendo queda nas faixas seguintes.
A cada 8 minutos uma mulher é estuprada no Brasil, segundo a Secretaria de Segurança Pública. E a maioria acontece com crianças até 14 anos de idade e dessas, a cada três, duas são pardas.
Conclusão: os estupradores preferem crianças. Aqui a grande preocupação é como essas crianças se desenvolverão física e psicologicamente. O corpo vai revelando suas dores anímicas ao longo de suas vidas.
Precisamos de mais políticas públicas e equipamentos adequados, assim como projetos socioeducativos para crianças e adolescentes quanto a sexualidades e cuidados contraceptivos. Isso é da alçada da Saúde Pública, portanto de responsabilidade do Estado.
Existe um projeto chamado Vivas (uma organização política) que auxilia meninas e mulheres a acessarem os serviços de aborto legal no Brasil e exterior.
Há um viés pseudorreligioso na defesa desse projeto sustentada por uma bancada evangélica no Congresso, sob a alegação de defesa da vida. Porém, ele passa a incriminar mais violentamente a mulher estuprada do que o próprio estuprador, que passará a receber penas mais brandas do que ela. Também tem o viés político em que o próprio autor desse PL declara nas mídias que isso foi uma provocação ao presidente da república, para que ele se posicione sobre e o tema aborto, tão polêmico socialmente.
Mas por que punir e vilanizar mais ainda as meninas e mulheres?
A quem interessa essa pauta do aborto por estupro na política?…
Mas e nós Mulheres? E nossos corpos, como ficam? Somos consideradas apenas reprodutoras e nos tornamos moeda de troca na negociação de forças políticas reacionárias.
Não, não e não: os nossos corpos nos pertencem!!!
O que certas masculinidades tóxicas não querem é abrir mão de seus poderes e nos atacam.
A Misoginia é o ódio, desprezo, preconceito ou aversão a mulheres e meninas. Essa visão de mundo sexista coloca a mulher em condição de submissão ao homem, visão essa que vem sendo construída sócio historicamente sobre a pauta patriarcal e machista do homem no nosso mundo ocidental cristão vivido nos últimos séculos.
Vale perguntar: que democracia é essa que dizemos viver se mulheres têm menos direitos, embora seja a maioria da população no nosso país?
Segundo o censo do IBGE de 2022:
- Sobre gênero os resultados apontam que no Brasil vive cerca de 104,5 milhões de mulheres e 98,5 milhões de homens, ou seja, 51,5% e 48,5%. Portanto, as mulheres são maioria.
- No ranking de desigualdade de gênero mundial, que reúne 146 nações, o Brasil ocupa o 94º lugar, segundo o Fórum Econômico Mundial.
- Sobre etnia e raça, o IBGE tipifica pessoas negras subdivididas em pardas e pretas. A maioria da população se declarou negra – 55,5%: 92,1 milhões de pessoas pardas (45,3%) e 20,6 milhões se declararam pretas (10,2%). 43.5% são brancas, 0,8% indígenas e 0,4% amarelas. Ou seja, as pessoas negras se autodeclararam maioria pela primeira vez.
Quanto a ter direitos e ter acessos a esses direitos, há desencontros. Mulheres adquiriram o direito ao voto no nosso país somente em 1932, mas a presença de mulheres na política, embora seja fundamental para garantir a diversidade e eficácia democrática, ainda deixa a desejar quanto à representatividade que atenda às suas necessidades específicas. Informações colhidas no site Brasil Escola nos afirma que elas perfazem somente 15% na Câmara Federal e 12% no Senado. Essa sub-representação reflete as barreiras estruturais e culturais enfrentadas por nós mulheres.
Com relação a etnia e raça, os dados são alarmantes quando tratamos das interseccionalidades. Entenda-se esse termo como a interação ou sobreposição de fatores sociais que definem a identidade de uma pessoa e a forma como isso irá impactar sua relação com a sociedade e acesso a direitos. É importante destacar que:
- A política de cotas nas universidades e instituições de ensino públicos reservam vagas para candidatos que cursaram todo o Ensino Médio em escola pública, podendo participar pessoas negras, indígenas, pessoas com deficiência e estudantes de baixa renda. A justificativa é que as cotas são uma medida de ação contra a desigualdade num sistema que privilegia um grupo racial (a branquitude) em detrimento de outros. Mas há quem contraponha às cotas alegando que os cotistas ingressam no ensino superior com baixa qualidade de aprendizagem, o que nivelaria por baixo a produção do conhecimento coletivo nas universidades.
- Já sabemos da desigualdade salarial entre homens e mulheres que desempenham o mesmo trabalho. Mas também há desigualdade entre brancos e negros. Então, a pirâmide social salarial se estrutura assim: no topo está o homem branco, depois o negro, depois a mulher branca e por último a mulher negra. Em contrapartida, as famílias monoparentais são a maioria hoje no nosso país e são chefiadas por mulheres negras e periféricas em sua maioria também. Falamos em aborto de mulheres, mas pouco ainda responsabilizamos os homens pelo abandono paternal.
- Sobre a comunidade LGBTQIAPN+ há um incomensurável desrespeito e preconceito em relação a essa população. Sabemos que o Brasil é o país que mais mata pessoas trans no mundo. A homo e a transfobia é algo intrínseco nas próprias famílias dessas pessoas; muitas delas são escorraçadas de seus lares e passam a viver em situação de rua, tendo muitas vezes que se prostituírem para sobreviver. Socialmente as pessoas trans, tanto homem quanto mulher, ainda buscam seu lugar público para satisfazerem suas necessidades fisiológicas. Que banheiro usar? O seu nome de registro pode ser mudado para o de sua escolha na transição? É bom lembrar que trans homem pode ter útero, ovário e trompas, portanto pode procriar. Existem profissionais da saúde habilitados a atenderem essa população?
E outras perguntas aqui se fazem pertinentes:
O que cada pessoa tem a ver com os corpos de outras pessoas?
Que Moral é essa que esconde a hipocrisia, o cinismo e o sofrimento humano?
Como o Psicodrama pode contribuir com esse binômio Democracia e Poder?
A prática com grupos tem referendado o que Moreno já parafraseava João no Evangelho: “no princípio, é o vínculo”. A metodologia psicodramática nos oferece inúmeras possibilidades criativas: rodas de conversa, grupos de estudo, lives, grupos terapêuticos, teatro espontâneo/debate, sociodramas etc. A confirmação é que os grupos fortalecem as pessoas individualmente e o elo que as une forma uma rede de proteção que pode se multiplicar e se expandir num grande propósito ou projeto dramático para o enfrentamento da realidade.
A terapia de grupo de gênero feminino na contemporaneidade tem suscitado muitas inquietações, questionamentos e respostas novas a problemas já muito antigos como o machismo e o patriarcalismo. As mulheres têm podido expressar suas angústias represadas há muito tempo e buscam se empoderarem na força umas das outras, compreendendo as fragilidades que as rondam intrinsecamente e à sua revelia. O fato de desenvolver o grupo com base numa unidade funcional e estabelecer parcerias com pessoas para desenvolver determinados trabalhos já é o prenúncio de tudo dito anteriormente nesse parágrafo. Essas construções, tenho certeza, têm sido muito benéficas para todas nós.
A teoria dos Papeis tem sido uma base teórica importantíssima no desenvolvimento desses projetos, uma vez que ao nos definirmos nos papeis sociais, os papeis psicodramáticos vão sendo desvelados e aprofundados nos vínculos que as pessoas estabelecem em suas vidas. A ampliação da consciência de cada uma possibilita o fortalecimento em suas redes de pertencimento, dada que sua identidade é edificada e atualizada.
Corroborando, a teoria da Espontaneidade é uma aliada indispensável nessa construção coletiva, na medida em que ações empreendidas por determinadas pessoas são capazes de despertar aspectos congelados e enrijecidos de outras, que passam a buscar formas inusitadas de pensar e agir, modificando o seu sentir.
O exercício da empatia frequentemente é incitado pelas técnicas básicas do duplo e do espelho, mas principalmente pela inversão de papeis, onde buscamos aprimorar a tele, desconstruindo aspectos transferenciais trazidos nas histórias de vida de cada pessoa. Buscamos o Encontro, sempre!
Já dizia nosso mestre criador J. L. Moreno (1993, p. 86): “O Estado de Espontaneidade é o estado de produção, o princípio essencial de toda a experiência criadora”.
Complementando com a nossa grande poetisa Clarice Lispector: “Enquanto eu tiver perguntas e não houver respostas continuarei a escrever”.
Afinal, que mundo queremos? Eu, você, nós!!!…Elas, Eles e Elus estão incluídos???
REFERÊNCIAS
https://www.gov.br/mj/pt-br/acesso-a-informacao/institucional/sumario/quemequem/secretaria-nacional-de-seguranca-publica
https://www.institucional.mapadoacolhimento.org
Lispector, C. (1998). A hora da estrela. Rocco
Malaquias, M. C. (2023). Etnodrama: Contribuições do grupo de estudos de psicodrama e relações raciais. Ágora.
Moreno, J. L. (1993). Psicodrama. Cultrix.
Nery, M. P., Eutrópio, A. C., Vomero, L. S. Z. (2024). Sexualidades, corpos e poder: Desobediências criadoras. Ágora.
Trabalho apresentado no 24 º Congresso de Psicodrama de 2024
Convites dos encontros mencionados neste artigo:





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